Por Claudia Santos

Ao contrário do que possamos entender por “laboratório”, como aqueles ambientes científicos meticulosamente controlados (famosos pelos seus ratinhos brancos), compreender as cidades como plataformas e laboratórios urbanos diz respeito ao seu caráter social, no qual os espaços se caracterizam por serem indisciplinados e complexos mediante a diversidade de atores que interagem entre si.

De acordo com autores que desenvolveram mais esta visão sobre as cidades, os “laboratórios vivos” são compreendidos como: “regiões físicas ou realidades virtuais, ou espaços de interação, nos quais as partes interessadas formam parcerias públicos-privadas (4Ps) de empresas, órgãos públicos, universidades, usuários e outras partes interessadas, todos colaborando para criação, prototipagem, validação e teste de novas tecnologias, serviços, produtos e sistemas em contextos da vida real” (TUKIAINEN, LEMINEN E WESTERLUND, 2015, p. 17).

Para David Bollier, da The Aspen Institute Communications and Society Program, “a ideia de ‘cidade como plataforma‘ é sobre o desenvolvimento de infraestruturas e políticas que permitam aos cidadãos, empresas e outros círculos eleitorais cívicos desempenhar um papel maior e direto na vida da cidade. Com espaços abertos para as pessoas contribuírem e assumirem responsabilidade, as cidades podem se tornar “experimentos de governança em que pessoas comuns e agências da cidade podem explorar formas diferentes e melhores de satisfazer necessidades e animar a vida pública” (BOLLIER, 2016, p. 7).

Para o autor, as cidades como plataforma levam em consideração quatro ferramentas que as tornam mais “inteligentes” – pessoas, dados, infraestrutura e tecnologias – que atualmente podem interagir de maneira mais fluida e sinergética. E tudo isso abriria espaço para um novo tipo de governança e organização da sociedade com mais participação cívica, empregabilidade e transparência, por exemplo, em que governo e sociedade atuam em um modelo de co-criação.

Com a crescente urbanização das cidades, isto é, com o aumento populacional urbano em relação ao rural, diversos novos problemas sociais começaram a surgir como o aumento da criminalidade, o desemprego, a desigualdade social e a poluição do meio ambiente. Atualmente, diversas instituições têm apresentado propostas para a solução destes problemas em conferências nacionais e internacionais, tendo as cidades papel primordial na implementação dessas medidas para que o impacto local futuramente seja global.

Dois temas que tem sido tendências globais ao se falar sobre cidades são: Cidades inteligentes e sustentáveis e Cidades globais e paradiplomacia. Veremos mais sobre eles a seguir:

 

Cidades inteligentes e sustentáveis

 

As chamadas cidades inteligentes ou smart cities baseiam-se na premissa de que a tecnologia deverá ser usada em serviço das pessoas, que formarão redes de informações que permitirá que as cidades usem recursos de maneira mais inteligente ou otimizada a fim de promover um desenvolvimento sustentável. Com tantos problemas causados pela urbanização, como os citados anteriormente, as cidades inteligentes tem como objetivo tornar as cidades mais habitáveis e melhorar a qualidade de vida dos cidadãos e cidadãs.

Com a conectividade sendo um ponto-chave para as cidades inteligentes, o acesso à internet acaba se tornando vital e para muitos autores desta corrente, isto deveria ser um direito humano para evitar a desigualdade de oportunidades de acesso à tecnologia e, consequentemente, de melhora de qualidade de vida. Em uma entrevista para Stephen DeAngelis, redator do site Enterra Solutions, Sam Pitroda, fundador de um think tank (organizações de pesquisas sobre políticas públicas capazes de apresentar recomendações a atores políticos) sem fins lucrativos chamado The People for Global Transformation, disse que acredita que para ser “inteligente”, as cidades devem ser “cidades felizes”, construindo comunidades melhores e um ambiente em que as pessoas estejam em melhor situação em termos de poluição, trânsito, educação, saúde, empregos, condições de vida e espaços culturais.

Uma cidade sustentável se caracteriza por ser muito bem planejada e administrada, tendo como destaque em suas práticas: ações efetivas para a diminuição da poluição, bom planejamento urbano dos serviços de transporte público, mobilização urbana e utilização de energia limpa, destinação adequada dos resíduos urbanos, promoção de justiça social e fortalecimento da governança democrática.

Desde o ano de 2015, muito se discute a nível nacional e internacional sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs), para a Organização das Nações Unidas (ONU). Desenvolvimento sustentável seria conseguir atender às necessidades da geração atual sem comprometer a existência das gerações futuras, sendo assim, a ONU criou a Agenda 2030, um plano global composto por 17 objetivos de desenvolvimento sustentável para que seus países membros assinassem e se comprometessem em implementar as mudanças nos diversos setores da sociedade. Dentre estes objetivos está o de “tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis”.

Estima-se que até 2030 a população global aumente enormemente, o que implica em fortalecer políticas globais a fim de prevenir os efeitos das mudanças climáticas nos centros urbanos e os demais problemas ligados à urbanização. Segundo o Glossário de termos do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 11, do Programa de desenvolvimento das Nações Unidas (2018), dentre os objetivos que são esperados até 2030 são que: se aumente a urbanização inclusiva e sustentável, bem como a elaboração de um modelo de planejamento e gestão que seja participativa, integrada e sustentável; reduza o número de mortes e o número de pessoas que são afetadas por catástrofes naturais e demais vulnerabilidades econômicas e sociais e que se proporcione à população o acesso universal a espaços públicos seguros, inclusivos, acessíveis e verdes.

Em seu artigo Chaitanya Kanuri (2016), expõe quatro etapas básicas para a implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável nas cidades elas seriam:

– Iniciar um processo inclusivo e participativo: aumentar a conscientização sobre os ODSs e incluir os mais diversos atores interessados no alcance das metas;

– Definir a agenda local dos ODSs: adaptar os ODS globais ao contexto de desenvolvimento local;

–  Planejar a implementação dos ODSs: pautar o planejamento em metas e pensar em mecanismos que obtenham resultados sociais, econômicos e ambientais mais sustentáveis;

– Monitoramento e avaliação: fiscalizar a implementação dos ODSs com o objetivo de que ela aconteça como o planejado e promover capacitação local para uma governança mais responsiva e responsável a longo prazo.

Um aspecto correlacionado ao fato de atingir todos estes ODSs no âmbito local das cidades é a inovação. No ano de 2017, a Universidade de Harvard realizou uma conferência com dois novos prefeitos e uma nova prefeita dos Estados Unidos a fim de lhes oportunizar colaborações, troca de informações e apoio frente às questões complexas que enfrentam em suas cidades. Na conferência disponível logo abaixo denominada: Cidades como laboratórios de inovação: O que o país pode aprender (Cities as Laboratories for Innovation: What the Country Can Learn), os convidados debatem como inovações precisam de lideranças para ser colocadas em prática, ao passo que uma relação direta de diálogo com a sociedade civil facilita a busca por soluções para problemas de forma não somente reativa, mas preventiva.

 

 

Por falar em inovação, os autores Tukiainen, Leminen e Westerlund (2015) que também compreendem as cidades como plataformas para iniciativas de inovação simultâneas e divergentes, acreditam que as cidades contribuem como plataforma em quatro principais pontos, seriam eles:

– Melhoram o dia-a-dia;

– Conduzem experimentos com consumidores e cidadãos;

– Experimentam e implementam novas tecnologias e serviços;

– Criam novas inovações e economias.

As recomendações de políticas de governo para as cidades atingirem toda a sua potencialidade de ação e serem impulsionadoras da inovação atingindo os objetivos anteriormente citados, seria que elas deveriam captar e conectar várias partes com o objetivo de criar e manter ecossistemas sustentáveis, por meio de dados abertos, investindo em uma expertise distribuída, não centralizada e no empoderamento das partes interessadas (Stakeholders) e cidadãos explorando melhor, por exemplo, como instituições filantrópicas podem contribuir para isso.

Um novo conceito que surgiu na literatura sobre este último aspecto elencado no parágrafo anterior é o “crowdfunding and crowdsourcing”. Como apresentado no relatório do NewCities (2018) sobre o assunto, estes dois conceitos referem-se ao chamado “urbanismo de multidão” que nada mais é do que uma nova maneira de olhar para os sistemas que moldam cidades, a partir da capacitação da multidão, propiciando novos olhares sobre a realidade e insights úteis. A principal ferramenta de “crowdfunding cívico” é identificar necessidades, reunir ideias e ir atrás do financiamento necessário para a realização do projeto. Isso envolve trabalho social e construção de redes, com o objetivo de envolver a comunidade e gerar impacto social e sustentabilidade.

O crowdfunding cívico pode ser compreendido como uma estratégia “não para preencher lacunas nos orçamentos municipais, mas para criar oportunidades de colaboração e permitir que as pessoas apoiem projetos diretamente que vão além do que podem esperar de seus impostos” (NEWCITIES, 2018, p. 3). O crowdfunding também pode servir como espaço de reunião para apoio de diversos projetos por vários atores e fontes de financiamento que querem investir em iniciativas locais, tonando assim, um modelo de democracia urbana nas cidades.

Mas voltando às recomendações para as políticas de governo, Paolo Aversano et al. (2017) em um documento para a Comissão europeia, os autores sugerem um tipo de economia denominado – economia circular – que seria compatível com um modelo de cidade sustentável, ela teria como objetivo promover a otimização dos recursos e a adoção de tecnologias mais limpas, que buscassem minimizar a geração de resíduos. Para que esta inovação fosse possível, os autores ressaltam que ela precisaria de uma abordagem sistêmica e de longo prazo a fim de transpor as barreiras, no qual as cidades deveriam agir como facilitadoras, estimulando a co-criação, o co-design e a co-implementação entre os diversos atores da sociedade, tanto a nível local como internacional.

Em um estudo de caso realizado por Paolo Aversano et al. (2017) com cinco cidades europeias (Lisboa (Portugal), Helsinki (Finlândia), Manresa (Espanha), Riga (Letônia) e Eindhoven (holanda)) sobre suas percepções sobre a economia circular, descobriu-se que as cidades associam a economia circular à “Inovações tecnológicas” e “envolvimento dos cidadãos”, enquanto aspectos ligados a diplomacia científica (cidade participando de iniciativas globais ou bilaterais) é menos valorizada. Para além disso, neste estudo de caso foi possível perceber alguns pontos em comum nos projetos de Economia Circular e sua relação com as dimensões sistêmica da inovação, por exemplo, reconhece-se o papel central de Instituições de pesquisa, universidades e empresas inovadoras no processo, já é possível perceber a existência de novos modelos de negócios e simbioses industriais, as cidades estão usando uma grande mistura de instrumentos de financiamento para promover a economia circular, as cidades estã começando a disponibilizar seus dados a fim de possibilitar novos serviços digitais e a partir das cidades de Helsinki, Eindhoven e Lisboa foi possível perceber que a metodologia de “laboratório vivo” é uma importante inovação do setor público que permite que as inovações aconteçam de baixo para cima, isto é, com maior participação dos cidadãos.

 

Cidades globais e paradiplomacia

 

No contexto das relações internacionais contemporâneas, as cidades também exercem um papel importante como agentes estruturadores de dinâmicas em um novo sistema que abrange novos atores. Essas ações internacionais realizadas pelas cidades são chamadas de Paradiplomacia ou diplomacia cultural e são compreendidas como ações de cidades que ocorrem de forma paralela ao Estado e que geram um modelo de cooperação descentralizada (sem a participação do Estado) e horizontal com o objetivo de alcançar interesses em comum.

Nos últimos anos na América do Sul, a atuação destes atores subnacionais (as cidades) foi facilitada pelos processos de integração regionais realizados em conjunto pelos países e pela criação de espaços próprios como a Rede Municipal de Mercocidades fundada no ano de 1995 e a organização Cidades e Governos Locais Unidos (CGLU) fundada em 2004. Em 2008, a Foreign Policy, uma renomada revista de Política Internacional apresentou um ranking das cidades globais de acordo com cinco critérios: atividades de negócios (Business Activity); capital humano (Human Capital); tráfego de informações (Information Exchange); experiência cultural (Cultural Experience); e envolvimento político (Political Engagement), o resultado foi o seguinte:

Em primeiro lugar no ranking de cidades globais aparece a cidade de Nova York situada nos Estados Unidos, mas é possível perceber que, sobre as cidades em destaque da América do Sul, apesar de no ranking geral a cidade de São Paulo ocupar a 31ª posição, Buenos Aires a 33ª e Rio de Janeiro a 47ª, se analisarmos a dimensão cultural a cidade do Rio de Janeiro sobe para 22ª posição, seguida por Buenos Aires em 25ª e São Paulo em 27ª, reconhecendo a oferta cultural dessas cidades.

Como expresso pelo Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná, Leonardo Mèrcher, “As cidades possuem a responsabilidade do desenvolvimento de suas comunidades, incluindo a esfera cultural”. Sendo assim, se suas demandas parecerem não ser atendidas à nível nacional, as cidades têm como opção procurar novas oportunidades no nível internacional, ampliando assim a sua rede de relações e encontrar as melhores soluções para problemas comuns por meio de transferência de políticas públicas.

 

Mas afinal, o que podemos tirar de tudo isso?

 

Bom, a partir desta breve explanação sobre o tema entendemos que compreender as cidades como laboratórios vivos” ou “laboratórios sociais” é compreender que diversos atores presentes na sociedade podem intervir neste campo e serem agentes de transformação, sejam eles de qual natureza forem, públicos, privados ou sociais, podendo até mesmo agir em conjunto potencializando a ação. Como expresso por Andrew R. Schrock “a ‘cidade como laboratório’ é uma metáfora perfeita para melhorias progressivas na vida cívica”, pois pensar as cidades como laboratórios permitiu que surgissem novos insights sobre o coletivo e tornou mais visíveis os problemas sociais.

Sendo assim, como exposto por Daniel Lage Chang et al. (2018), o conhecimento baseado no desenvolvimento urbano (Knowledge-based urban development – KBUD) parece o mais adequado aos desafios da atualidade, visto que o papel das cidades vem cada vez mais aumentando devido ao caráter mundial altamente “urbanizante” e sua complexidade sistêmica que exigem um desenvolvimento muito mais sustentável, interdependente e interativo pensando no futuro e na melhoria da qualidade de vida da humanidade. Para isso, o autor ressalta que são necessárias mudanças culturais e de hábitos no comportamento humano, por mais que isso aconteça a longo prazo.

Dentre as propostas de debates sobre o assunto que surgem estão: Como a sociedade civil e demais atores públicos e privados podem aliar conceitos como sustentabilidade com ferramentas de tecnologia na melhora das condições de vida da população? Como os agentes podem interagir a fim de ampliar os direitos à saúde e educação da população? Como grupos da sociedade civil podem criar engajamento e conscientização acerca de determinados temas de direitos humanos? Estas são algumas dentre tantas discussões que podem ser feitas sobre a relação entre cidades e sociedade, já que como exposto pela socióloga Saskia Sassen, as cidades são um sistema complexo, mas incompleto e nessa complexidade reside a possibilidade de se reinventar.

 

Referências e mais sugestões de leitura sobre o tema:

 

AVERSANO, Paolo et al. Cities as Living Labs – Increasing the impact of investment in the circular economy for sustainable cities. European Commission. 2017.

BOLLIER, David. The City as Platform: How Digital Networks Are Changing Urban Life and Governance. The Aspen Institute Communications and Society Program. 2016.

CHANG, Daniel Lage et al. Knowledge-based, smart and sustainable cities: a provocation for a conceptual framework. Journal of Open Innovation: Technology, Market, and Complexity. 2018.

DEANGELIS, Stephen. Smart Cities and People. Enterra solutions. Disponível em: < https://www.enterrasolutions.com/blog/smart-cities-people/>.2017.

FOREIGN POLICY. The 2008 Global Cities Index. Washington: Foreign Policy of Washington Post Company, pp. 68-76 nov./dez. 2008. Conteúdo disponibilizado em http://www.foreignpolicy.com/. Acessado em 20 de abr. 2011.

KANURI, Chaitanya et al. Getting Started with the SDGs in Cities. Published by:Sustainable Development Solutions Network. 2016.

MÈRCHER, Leonardo. Paradiplomacia cultural nas organizações internacionais: Buenos Aires e Rio de Janeiro na CGLU e MERCOCIDADES; 2013; Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Universidade Federal do Paraná.

NEWCITIES. Crowdsourcing the City: Outcome Report. 2018.

PEREIRA, Alexsandro Eugenio; BERNARDO, Glaucia Julião; CULPI, Ludmila Andrzejewski  and  PESSALI, Huáscar Fialho. A governança facilitada no Mercosul: transferência de políticas e integração nas áreas de educação, migração e saúde. Rev. Adm. Pública [online]. 2018, vol.52, n.2 [cited  2018-11-28], pp.285-302.